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A presente dissertação dá notícia
de um estudo que pretendeu informar um projeto de revitalização para um
edifício abandonado, onde nos anos 90 funcionou um centro comercial, com
escritórios e habitação nos seus pisos superiores. A sua localização no centro
da Figueira da Foz, a sua dimensão em relação aos lotes adjacentes bem como o
seu estado atual de início de degradação, motivaram um projeto de intervenção
para a dinamização da estrutura existente.
Os processos que este projeto
implicou são apresentados de forma cronológica em quatro capítulos: 1) Conta-se
a história do lote em que o edifício se insere, onde outrora existiu um teatro;
2) Segue-se um contexto que tem em conta a sua forma e antiga função; 3) Procuram-se
diferentes estratégias para uma nova apropriação; 4) Apresentação de
intervenção apoiada de um diagnóstico às potencialidades da cidade, do bairro e
do próprio edifício.
…………………………………..
De uma observação atenta e crítica
da cidade encontrou-se um problema capaz de promover diferentes estímulos
essenciais para a realização desta dissertação: o devoluto edifício O Trabalho,
antigo centro comercial, com escritórios e habitação nos pisos superiores,
localizado na Figueira da Foz.
Está inserido no quarteirão
delimitado a norte pela Rua Cândido dos Reis (rua que partilha com uma das
fachadas com o edifício do Casino Figueira), a sul pela Rua Dr. Francisco Diniz,
a poente, pela da Rua João de Lemos, e a nascente pelo Passeio Infante D.
Henrique.
A escolha de um edifício com uma
posição central na cidade e uma desativação prolongada, para além de se
considerar formal e programaticamente desenquadrado, levanta a emergente
necessidade de uma resposta viável, o que sugere um amplo campo de estudo para
uma solução informada no campo da reutilização de espaço. A partir do edifício
O Trabalho conta-se uma história, apresenta-se um estudo, procede-se a uma
procura e atinge-se um ponto de chegada. Processo distribuído ao longo de
quatro capítulos.
Da história do próprio lote surge
o primeiro momento: contam-se as diferentes mutações a que o bairro, e
especificamente o quarteirão, se sujeitou. Revelou-se pertinente voltar atrás
no tempo para compreender a história do lugar onde se o encontra o edifício em
estudo, tendo em conta a existência de um outro, precedentemente, o Teatro
Parque-Cine. Interessou fazer a sua contextualização histórica na cidade, para
perceber as razões que levaram à sua demolição e à construção da presente
estrutura, da qual se relata o estado presente.
A partir dessa história abre-se o
campo de estudo e faz-se um enquadramento mais alargado do edifício atual. O
que contribuiu determinantemente para ditar o seu fim, imagem e programa, estão
na génese da análise do segundo capítulo que visa melhor perceber as origens
deste projeto que se destaca notoriamente do lugar em que se insere.
O movimento pós-moderno e o
surgimento de galerias comerciais em Portugal nas décadas de 80 e 90 são
acontecimentos lidos individualmente para compreender o objeto sob duas
vertentes: a da forma e a da tipologia.
Numa terceira parte, a ancorar
mais diretamente o último momento deste trabalho, enumeram-se motivações e
intenções para a apropriação deste espaço que, depois de uma breve reflexão
pessoal, se decide manter e revitalizar. Problematiza-se também o uso desta
estrutura como ela existe e considera-se que qualquer intervenção feita deverá
abrir um campo de possibilidades tal que reúna as movimentações necessárias
para que este espaço desativado não volte ao seu estado atual de abandono e
desintegração urbana. Neste sentido, são elencadas as práticas de Cedric Price,
Bernard Tschumi, Rem Koolhas e Lacaton & Vassal, das quais se elegem e
explanam os processos práticos e teóricos relevantes para a elaboração de um
novo projeto.
Finalmente, transporta-se o estudo
dos primeiros capítulos para a prática da apropriação do espaço desativado, em
que a proposta é apresentada como consequência de um estudo e de um diagnóstico
seguido de um estudo às lacunas e incoerências programáticas à escala da cidade
e do bairro. O grande objetivo de todo este processo reflete-se na capacidade
da proposta potenciar a estrutura e revertendo a sua permanente afetação, para
inclusivamente proporcionar a fixação de um maior número de pessoas no bairro.
A apresentação do projeto conclui o percurso entre problema, estudo e
intervenção.
BAIRRO NOVO
A Figueira da Foz, dotada de
Serra, Rio e Mar, começa a ser conhecida como destino turístico nacional, pela
sua praia, desde meados do século XIX. Para além das suas excecionais condições
naturais, sempre usufruiu do serviço de Caminho de Ferro o que incrementou o
seu desenvolvimento ao nível da comunicação com outras cidades e da facilidade
de movimentação dos seus habitantes e turistas. O Casino, outrora considerado o
melhor da Península, ainda hoje movimenta pessoas até ao centro e continua a
ser uma das maiores atrações. Como ‘pontos turísticos chave’ indicam-se o Tenis
Club, o Jardim Municipal, a Esplanada Silva Guimarães, o Coliseu Figueirense, o
Mercado Engenheiro Silva, o Parque de Campismo e o Parque das Abadias com o
Museu Municipal Santos Rocha e o Centro de Artes e Espetáculos. Para além do
turismo, a economia da cidade concentra-se nas seguintes atividades:
instalações portuárias, salinas, arrozais e da indústria têxtil, vidreira e de
produção de celulose.
Ao nível do território, as três
fases do crescimento da cidade são bem visíveis ainda nos dias de hoje e
continuam a individualizar-se funcionalmente. A partir do séc. XX começaram a
ler-se duas cidades distintas: a cidade velha, o núcleo primitivo, mais próximo
da zona dos Caminhos de Ferro e onde se concentra a maioria das atividades
administrativas e de comércio; e o Bairro Novo,
desde sempre a zona turística e de lazer e onde hoje se concentram a
atividade hoteleira, área delimitada pelo Mondego e Atlântico.
Ambas as zonas são marcadas por
uma arquitetura avulsa em que não se consegue destacar uma linha de um
movimento específico. Algumas das edificações ilustram mesmo falta de técnica e
de leitura do território e nelas perde-se o que poderia ser um valioso balanço
entre a paisagem edificada e a natural.
É a partir de 1858 que a Figueira
começa a receber uma grande afluência de banhistas. A partir de 1861 forma-se a
“Companhia Edificadora” que começa a construir o hoje conhecido como Bairro
Novo, na sua origem “Bairro Novo de Santa Catarina”, a poente do núcleo
inicial.
Uma terceira cidade que se desenvolve
hoje mais para Norte e Oriente resulta das construções de metade do século em
diante e acentua ainda mais esta imagem de cidade descaracterizada, com um
crescimento extravagante e desregulado, vincado por traços de má gestão
política.
A partir aproximadamente da década
de 60, a dinâmica de crescimento alterou-se profundamente por causa da pressão
exercida pelos interesses turísticos e imobiliários, tendo como resultado o
alastramento caótico da cidade ao qual nem os sucessivos planos de ordenamento
têm sabido ou conseguido pôr travão eficaz.
Hoje, a cidade continua a sofrer
com iniciativas urbanas desajustadas. No entanto tem-se assistido a diversas
iniciativas para que volte a ganhar maior importância enquanto destino
turístico e simultaneamente se torne mais dinâmica durante os meses que não só
os de Verão. É neste sentido e com esta perspetiva futura que este trabalho
surge.
……………………………….
À presente dissertação interessa, à
cidade e ao Bairro Novo, onde nas suas ruas de traçado geométrico sempre se
concentrou a vida noturna, social e cultural. Foi com a invenção do cinema que,
nesta área, novas casas destinadas à projeção de filmes começaram a abrir: Em
1896 faz a sua estreia no Casino Peninsular (instalado no antigo Teatro-Circo
Saraiva de Carvalho). Próximo, existiria um animatógrafo, na rua Dr. Calado.
Poucos anos depois, abria o Cinematógrafo Peninsular na rua Cândido dos Reis
que desapareceu na consequência de um incêndio. Em 1907 existia o Cinematógrafo
Fivaller, outrora conhecido como Cinematógrafo Urban (instalado num antigo
teatro) e que funcionava na rua Francisco António Dinis. Também nesse ano abriu
ao público o inicialmente conhecido como Animatógrafo Parque, mais tarde
chamado de Teatro Parque-Cine e situado na rua Cândido dos Reis, junto ao
Casino. No ano de 1908 estavam em atividade a sala Pathé, o Salão High Life, o
Salão Popular e o Salão Edison.
O Parque-Cine era propriedade de
uma sociedade entre duas pessoas (o proprietário do edifício, Francisco Ribeiro
Gomes e um empresário catalão, Francisco Oller Grau). Em 1909 era a única sala
que se mantinha aberta durante todo o Inverno e que, durante o Verão,
apresentava sessões diárias, sendo as sessões de domingo à tarde as mais concorridas
e os meses de estadia dos veraneantes os de maior afluência. A sua implantação
urbana era ‘resultado da vontade de afirmação como um elemento de referência’ que
tinha uma privilegiada localização, junto ao Casino e no centro da cidade,
entre a atual rua Cândido dos Reis e a rua Dr. Francisco António Diniz.
Funcionava no seu auge como verdadeiro palco para a vida social dos
figueirenses.
Em meados de 1910, o local foi
arrendado a Adolfo Nandin de Carvalho e à Empresa Portuguesa Cinematográfica. Exibia
películas com som e algumas a cores.
A população flutuante que ali se
hospedava durante os meses de Verão e o incremento demográfico próprio levou ao
desenvolvimento desta área. Começaram por se construir grandes vivendas e mais
tarde casas económicas. Esta nova centralidade, que ficou rapidamente muito popular
pela sua proximidade com o mar e pelas suas vistas panorâmicas veio fixar novas
atividades comerciais: hotéis, restaurantes, cafés, casinos, farmácias,
oculistas, modistas, alfaiates, barbeiros, moços de fretes, cocheiros e
aquiladores e mais tarde cinemas. Algumas destas atividades iam,
inclusivamente, revezando-se entre a Cidade Velha e o Bairro Novo nos meses de
Inverno e Verão respetivamente (como era o caso da antiga Casa Havanesa),
O aparecimento do cinema deu-se no virar do século XX. Em Portugal começou por
ser exibido em adaptadas salas de teatro já existentes nas cidades. Esta nova
forma de expressão artística tornou-se um importante veículo de difusão
cultural e ganhou fama junto do público português. Isto levou à necessidade da
criação de mais espaços que tivessem na base da sua programação o cinema. As
primeiras salas que respondiam a esta especificidade começam a aparecer -
maioritariamente fruto de iniciativas privadas - no início do século. Esta
tipologia difunde-se por todo o território, com maior força em cidades de
pequenas dimensões onde desempenhava um papel urbano e social. Na maioria parte
destes espaços conciliava-se a projeção de cinema com a prática do teatro. Os
anos 30 foram os de maior difusão deste tipo de casas de espetáculo coincidente
com a instauração do Estado Novo.
HISTÓRIA DO TEATRO PARQUE CINE
E DE COMO SURGIU O EDIFÍCIO 'O TRABALHO'
O edifício, no seu estado inicial,
era construído totalmente em madeira com telhado revestido a zinco. O seu salão
tinha capacidade para cerca de 1500 pessoas. Mantiveram-se, durante todo o seu
período de existência, constantes obras de reparação, sendo as mais
significativas as realizadas entre os anos 20 e os 40, que lhe foram conferindo
novas comodidades. As mais significativas foram as de substituição de todas as
paredes de exterior de madeira para alvenaria, com a decoração interior a cargo
de Rogério Reynaud.
Em 1922 a sua gestão passou de
Carlos Pinto Idães para a Companhia Soveral Martins que se dedicava exclusivamente
à indústria teatral e cinematográfica. Até aos anos 30, no Parque-Cine já
teriam sido exibidos 2150 espetáculos, número que nos anos 40 aumentou para
2372 e para 2652 nos anos 50. 5 A sala de espetáculos continuou com grande
atividade até meados dos anos 50, começando a decrescer na década de 60.
Esta casa, que liderava o
espetáculo cinematográfico da Figueira da Foz, bem como iniciativas culturais
diversas (revistas, reuniões, saraus, teatros, espetáculos musicais, congressos
e documentários sobre os conflitos do tempo de guerra…) e mesmo após ter
sofrido diversas remodelações com vista à melhoria das suas condições, nunca
passou ao olhar do público, de ‘um grande barracão desabrigado’ com falta de
condições acústicas e desapropriado para espetáculos durante o inverno. As
falhas no telhado em zinco, já no final do seu tempo de atividade, obrigavam
mesmo os seus espetadores a assistir a peças de guarda-chuva aberto. Os jornais
locais recordavam inúmeras vezes o seu público e proprietários da urgência de
uma reabilitação profunda, a par da necessidade da existência de um teatro
condigno na cidade, que desde o encerramento da série de antigos teatros
existentes, não dispunha de uma sala apropriada.
Esta prolongada degradação,
conjuntamente com a fraca adesão do público, acabou por levar ao seu encerramento
definitivo em setembro de 1971.
“Situado no coração da cidade,
junto ao Casino, o Parque-Cine foi memória histórica de noites inesquecíveis de
cultura, mas há muito que perdera quaisquer hipóteses de recuperação, tal foi o
estado de degradação a que chegou”.
Em muitas cidades do país estes cine-teatros
foram adquiridos pelas autarquias e municipalizados, tantos eram os casos de
total abandono, desafetação do uso e demolição. Acima de tudo por falta de
reconhecimento do seu valor enquanto património cultural e arquitetónico porque
a proximidade histórica da sua construção não dava aos habitantes e
responsáveis o distanciamento temporal necessário para valorizar a manutenção e
recuperação destas construções, a que se alia o facto da sua função ter caído
no obsolescência já que a partir dos anos 70 a atividade cinematográfica
começou, pela primeira vez desde o seu aparecimento, em crise.
A Empresa Soveral Martins., que em
1972 apresenta um ante-projeto com vista à integral reabilitação do teatro,
regista em 1979 junto da Câmara Municipal da Figueira da Foz a intenção de
construir um novo complexo de utilização mista, mantendo as existentes lojas
com comércio e acrescentando-lhe um bloco habitacional.
“Aquele espaço era de tradição e
cultura que fazia parte da Figueira da Foz: o velho Parque-Cine não tinha,
lamentavelmente, condições para ser preservado dado o seu estado de degradação”,
admitia Américo de Oliveira, administrador da Seguradora “O Trabalho” que tomou
posse dos terrenos onde se inseria o teatro em 1987. Foi responsável pela obra
e proprietária do empreendimento que se ergueu na sequência da demolição do
Parque-Cine, a 19 de março de 1987.
A memória do que aquele espaço
representou em tempos para a cidade e o seu avançado estado de degradação, que
se arrastava há tantos anos, fez o acontecimento da sua demolição ser
substancialmente noticiado. “Há muito ameaça ruir e é um atentado à saúde
pública pela proliferação dos nojentos roedores, vai finalmente sentir os
efeitos do camartelo e das máquinas escavadoras, o que aplaudimos desde já, sem
reservas.”
Na sequência, já se questionava
qual o destino visado para o quarteirão, “…fica-se na expectativa de vermos o
que dali vai surgir. Mais um “mamarracho”, ou um edifício bem enquadrado e com
alguns serviços que possam servir o figueirense ?”
Com esperançosas perspetivas,
anunciava-se com orgulho: “Brevemente, um outro importante complexo irá surgir
no local onde existe o decrépito teatro”.
Em maio de 1991 o novo edifício já
estava totalmente construído deixando para finalizar alguns pormenores que se
foram rematando até setembro do mesmo ano quando as lojas, escritórios e
apartamentos no seu interior começaram a ser vendidos.
A notícia da sua construção e a
publicidade à venda dos seus espaços percorria completas páginas dos jornais
locais e do distrito, que o descreviam como “indiscutivelmente um espaço
comercial de rápida valorização na cidade”.
Depois de um conturbado processo
do projeto, com avanços e recuos no sentido de ampliar o volume de área
construída, são os desenhos datados de 1992, que sumarizam o que é hoje a
totalidade do empreendimento.
Compõe-se programaticamente por: 7
pisos, 2 subterrâneos destinados ao estacionamento, com 57 lugares no mais
profundo e 54 no superior; 42 lojas distribuídas por 2 pisos de comércio; No
rés-do-chão existem 20 lojas, 10 têm montras para a rua, enquanto as restantes
se viram para a praça interior iluminada por luz zenital e que comunica com o
piso superior onde se encontram 8 lojas viradas para o interior e 14 para a rua
e corredor central. A comunicação entre os pisos do comércio faz-se por 3
caixas de escadas e 2 elevadores. O acesso ao piso -2 é feito apenas pelas duas
escadas que sobressaem na fachada e que conectam todo o edifício, desde esse
piso até ao 7º; ao -1 acede-se por uma da caixa de escadas que atravessa os
níveis das lojas. Isto faz com que os pisos superiores de habitação, tenham
acessos exclusivos e, uma vez fechada a parte pública do edifício, pudessem ser
acedidos independentemente, não só pelo conjunto de 2 escadas que vêm do
estacionamento mas também pelos restantes 6 elevadores. O piso térreo e o 1º
são servidos por 2 casas-de-banho diferenciadas por género.
Subdivididos igualmente por 2
pisos, existem 28 espaços unicamente destinados a escritórios. No 2º piso, 6 dos 14 espaços, ainda se abrem
para o espaço central (comum também ao comércio). Os restantes, nesse piso,
abrem-se para a rua e para o corredor. No 3º piso a distribuição dos espaços é
semelhante mas todos se viram para o exterior uma vez que este nível já se
encontra acima da cota da cobertura da área de pátio interior. Cada um destes
espaços é servido pelo menos por uma casa de banho, sendo que aqueles com mais
de 90 m2 contam com 2. A distribuição para o interior dos escritórios é feita por um corredor, de
2,5 metros, como já acontecia no 1º piso, entre lojas. Os 4 pisos de habitação
contêm um total de 38 apartamentos distribuídos da seguinte forma: no 7º piso 3
t4’s; 1 t2’s; 4 t0’s e no 6º piso, semelhante ao 5º e 4º: 2 t4’s; 1 t3’s, 4
t2’s; 3 t0’s, totalizando 17 000 m2 de área construída.
Relativamente a questões
construtivas, de acabamentos e de pormenor, sabe-se que foram utilizadas lajes
maciças fungiformes, 500 toneladas de ferro, 12 000 m3 de betão armado, 250 km
de cabos de cobre nas instalações elétricas, 4000 m2 de chapas de vidro, 150
000 azulejos cerâmicos e 45 000 litros de tintas. Os pavimentos dos acessos e
pátio interior são em calçada “à portuguesa”, em calcário moleano. As escadas e
patamares são em mármore. Os apartamentos têm armários e roupeiros em madeira
de tola e móveis de cozinha em madeira de mogno, com sistema vídeo-porteiro e
de deteção de incêndios no interior. Os terraços e varandas estão isolados com
telas e são revestidos a tijoleira. As caixilharias interiores são em alumínio
anodizado, vermelho escuro. Nas zonas públicas, de estacionamento, comércio e
escritório, existe ventilação mecânica e os tetos são em canas de PVC
ignifugado.
No ano da sua inauguração o
edifício foi palco para diversos eventos públicos: a Feira da Indústria
Figueirense, o I Congresso da Associação Portuguesa da Imprensa Regional e no
ano seguinte, para um evento internacional de ranchos folclóricos. Não obstante,
continuava a questionar-se a falta de um Centro de Congressos apropriado para
este tipo de atividades, já que a praça interna, ainda que projetada para
receber eventos públicos não substituía um necessário espaço maior.
Diversos lojistas ocupavam os espaços
do centro-comercial. Dos que se conseguiram apurar, contabilizam-se no piso
térreo: duas popularmente denominadas “lojas dos 300”, a loja de mobílias
Anilar, o sandwich-bar Yes Brasil, a tabacaria Parque- Cine, o fotógrafo Cruz,
a galeria O Rastro, duas lojas de pronto a vestir, a retrosaria O Mimo da Guida
e o stand de vendas dos espaços do próprio edifício; no piso superior estava:
um cabeleireiro, um loja de artesanato Arte Latina, uma loja de multi-serviços,
a primeira loja de discos figueirense Discoteca Arco-Íris, uma papelaria, a
loja de cortinados Odete Decor’s, o sandwich bar Golden Gate e ainda a
retrosaria Filó.
Tornou-se um espaço do de
referência no comércio tradicional figueirense.
Os pisos superiores nunca
obtiveram licença de habitabilidade e, por isso, embora se tenham realizado
algumas reservas de apartamentos, nunca foram vendidos ou arrendados.
Entre 2001 e 2002 a falida
Seguradora O Trabalho vendeu o edifício ao grupo Banif, mais precisamente à
seguradora Açoreana. É a partir desse ano que se começam a registar diversas
queixas por parte dos proprietários das lojas, relativamente ao desleixo dos
novos gestores, perante o estado do empreendimento. Acusavam condições degradantes, maus cheiros,
falta de iluminação, problemas de salubridade e inclusivamente receio de
permanecer no seu interior depois de anoitecer.
Em paralelo, a nova proprietária,
pressionada pela Câmara Municipal (que se viu obrigada a tomar uma posição
auscultando os lesados) apresenta proposta para reabilitação integral do
edifício, aumentando consideravelmente a área habitacional. Por outro lado, as
entidades camarárias defendiam e continuam a lutar pela demolição do edifício.
À data do mandato de Duarte Silva, 2003, era expressa a intenção de ali se vir
a criar um novo espaço de animação. Esta situação de indecisão prolongada levou
ao inevitável encerramento dos espaços comerciais.
Os últimos a abandonarem, em 2007,
terão sido a proprietária do café e posteriormente uma dependência bancária,
que já só se abria para o arruamento sem sequer ter acesso pelo interior. Esta
situação decadente resultou em milhares de euros de prejuízo para os lojistas,
alguns, ainda hoje, proprietários dos espaços encerrados, a que não têm sequer
permissão para aceder.
Do edifício sobrou apenas o
estacionamento subterrâneo em funcionamento, na altura explorado pelo Casino
Figueira e arrendado a particulares, situação que se manteve até 2014. A partir
dessa data o edifício foi deixado ao completo abandono sendo, em meados de 2015,
a “casa” para uma série de “ocupas”. No final desse ano os proprietários
decidiram tomar providências e entaipar as entradas envidraçadas do edifício. À
data encontra-se com sinais de ocupação imprópria nos recantos do seu exterior
e toda a estrutura permanece com um ar de desmazelo próprio dos anos que por
ele já passaram.
No verão, o arruamento serve de
estacionamento ao ar livre para quem quer usufruir do que acontece no Bairro
Novo. No inverno, ninguém por lá passa. Agora as queixas partem das pessoas que
vivem ou trabalham nas redondezas, que pedem explicações e soluções. Sempre sem
dúvidas de que a melhor decisão será demolir “uma vez que a apropriação do espaço
desativado certamente indicará um estado de degradação que nada mais
permite”.
Relatos recolhidos junto de
antigos lojistas relembram os anos 90, de prosperidade, facilidade de negócio e
muita clientela. Também se recorda a falta de clareza e os estranhos trâmites
de todo o processo, sempre.
Entristece falar no rumo sem
esperança que o lugar tomou, mais uma vez, 40 anos depois do Teatro. Referem
que se fosse possível, não recusavam voltar para um Trabalho melhor, renovado.
Incomodam as notícias constantes que relembram o seu estado de degradação e as
das falsas esperanças vindas, por vezes da Câmara, por vezes dos
proprietários...
Ouve-se mais alto ‘revolta’ mas
também se ouve ‘esperança’.
……………………………...............................................…….
Construiu-se, por ordem
cronológica, esta sucessão de factos, com base nos documentos que se conseguiram
recolher do Departamento de Urbanismo da Câmara Municipal da Figueira da Foz no
sentido de sintetizar as fases e decisões que resultaram na demolição do
Parque-Cine e construção da volumetria hoje existente.
*24 de março de 1930 - Empresa
Soveral Martins Lda. endereça carta à Câmara Municipal da Fig. Foz com o
intuito de obter certas isenções para procederem à construção de um novo
Cine-Teatro no lugar do Parque-Cine, uma vez que este “barracão … envergonha a
cidade e os seus habitantes”.
*16 de fevereiro 1938 - Comissão de
Estética da Câmara Municipal aprova por unanimidade a solicitação para a
substituição das paredes exteriores de madeira por paredes de alvenaria.
*15 de abril de 1943 - Solicitada
autorização para, no prazo de 180 dias, se proceder a trabalhos de demolição e
reconstrução do palco e anexos do Teatro Parque-Cine com a finalidade de
substituir a sua constituição para material incombustível, como já sucedera no
restante edifício.
01 de maio de 1972 - Após
vistorias às condições do edifício, realizadas a 11 de agosto de 1969 e 21 de
julho de 1971, a Empresa Soveral Martins Lda., ainda proprietária, apresenta um
novo projeto que corrige todas as falhas apontadas à obra. Este projeto previa
a demolição de todo o miolo da sala de espetáculos. Propunha uma nova
disposição da plateia, construção de uma tribuna, criação de maiores
instalações sanitárias diferenciadas por género, um bar, bengaleiro e
vestiário. Também previa a implantação de um novo corpo para camarins, um foyer
maior e revisão de toda a instalação elétrica da construção.
19 de outubro de 1972 - A
Subdelegação de Saúde Privativa do Concelho da Figueira da Foz reprova o
projeto. Refutaram-no pelo incómodo deslocamento que as senhoras sentadas no
balcão teriam que ter para utilizar os sanitários, que se situavam nessa mesma
planta, mas apenas com acesso pelo piso inferior.
13 de novembro de 1972 - A Câmara
Municipal dá o seu parecer sobre o projeto de reabilitação: “Pena é que se
pretenda investir razoável soma na transformação de uma sala de espetáculos sem
qualidade e mal implantada no quarteirão onde se situa”. No entanto, acaba por
aceitar o projeto para as obras de modificação, mas revela iniciativa para
continuar um estudo, já internamente iniciado, para a modificação urbana total
daquele quarteirão.
15 de setembro de 1979 - Requerido
parecer sobre um novo projeto para um centro comercial e um bloco de habitação
a ocupar o lugar. O projeto faz-se acompanhar de uma memória descritiva que
salienta o estado de degradação e abandono do teatro “há já alguns anos”.
Entendem que devem manter as lojas existentes no primeiro piso, uma vez que “a
alteração das mesmas, além de poder criar choques de ordem formal de difícil
resolução, era, com certeza, um perigoso precedente a abrir para o eventual
desenvolvimento da zona”. Por cima deste piso de lojas, que era mantido,
criava-se um bloco com 25 apartamentos. É neste esboço de projeto que se propõe
pela primeira vez a abertura de um arruamento viário entre a Rua Cândido dos
Reis e a Rua Dr. Francisco António Dinis.
09 de janeiro de 1980 - A Câmara
Municipal responde, salientando a necessidade de uma revisão ao valor
patrimonial arquitetónico do antigo edifício: “Já mais que uma vez nos
referimos à necessidade de criar meios de defender o património arquitetónico
da cidade. Existindo dúvidas (…/…) sobre o valor do antigo teatro que se
pretende demolir, deve ser ouvida a Comissão de Arte e Arqueologia ou
organismos de funções similares antes de dar seguimento ao Processo”. Esta entidade,
elogia a abertura do novo arruamento, realçando a incontestável e necessária
melhoria viária. No entanto, faz vários reparos a erros do projeto: rampa de
estacionamento com maior declive do que o permitido (35% no lugar de 15%),
arruamento demasiado estreito, fraca visibilidade para o trânsito nos
cruzamentos, bem como uma série de omissões formais em relação à volumetria do
novo edifício. Solicita, no caso da inexistência do valor patrimonial,
apresentação de novo estudo com atenção às questões referidas.
20 de julho de 1980 - Solicitada
nova apreciação e aprovação a novo projeto, que já considerava o último parecer
da Câmara Municipal. Na Memória Descritiva pode ler-se: “Parece-nos
indispensável pensar a intervenção no lote de modo a esta não entrar em choque
com a malha envolvente, quer em termos formais e espaciais quer em termos
funcionais”. Justifica o novo arruamento como “dando deste modo muito mais
força a esta nova intervenção que em vez de se diluir por duas ruas
completamente distintas consegue formar uma frente de quarteirão…” e com a
possibilidade da criação de mais 11 lugares de estacionamento. O edifício seria
constituído por 4 pisos mais um subterrâneo.
O piso térreo destinar-se-ia a 14
lojas com acesso pela rua. No interior, um centro comercial com 22 lojas e um
cinema com a capacidade para 198 espetadores. Os restantes pisos, superiores,
contariam com 36 fogos de habitação, com a seguinte distribuição por
tipologias: sete T3, dezasseis T2, quatro T1 e nove T0, com a maioria dos fogos
duplex. Na cave existiriam 55 lugares e nas vias envolventes (no exterior)
23.
22 de fevereiro de 1984 - A
Empresa Soveral Martins Lda., faz novo requerimento à Câmara Municipal, uma vez
que os seus constituintes se encontravam insatisfeitos com o projeto por si
anteriormente apresentado “já que um grande lote como este possui capacidades
que deverão ser aproveitadas conscientemente em favor da revalorização de uma
zona central privilegiada. Assim, o que propomos é um aumento de ocupação,
conscientes que a importância do volume construído corresponde a uma
valorização estética e funcional do espaço envolvente.”
O arruamento que, segundo
descreviam primeiramente, viria melhorar substancialmente a deslocação viária,
agora “propõe-se que a nova rua proposta em anteriores estudos seja de
utilização pedonal para evitar que o trânsito automóvel, com os seus conhecidos
problemas, se aproprie de um espaço que, quanto a nós, é vocacionado e mais
útil para o peão. Tendo ainda em conta que a perspetiva para uma zona da cidade
como esta deverá ser a desmotivação do trânsito automóvel, reduzindo sempre que
possível a sua existência apenas às necessidades locais.”
Apresentam-se nesta fase, 3 pisos
intercomunicantes de escritórios e comércio, a iniciarem no rés-do-chão. Nos
pisos superiores desenvolver-se-ia a parte habitacional. A totalidade do
edifício seria servida por uma cave, destinada a estacionamento, com 2
pisos.
Na memória descritiva lê-se: “Foi
também preocupação nossa, a integração volumétrica e estética na zona
envolvente… respeitam-se as características da estrutura urbana existente,
optando-se pela tipologia do quarteirão…”. Juntamente com os desenhos são
também apresentadas perspetivas e esquemas a cores e preto-branco.
27 de março de 1984 - É aprovado,
sob o mandato do Presidente da Câmara Manuel Alfredo Aguiar de Carvalho, o
estudo prévio previamente apresentado.
14 de setembro de 1984 - A Câmara
Municipal solicita à Empresa Soveral Martins Lda. o pagamento de uma
comparticipação, a ser efetuada no levantamento da licença do projeto na
consequência do excesso de volume de construção. Eram cerca de 12 500 m2 que
resultam num excesso de área de construção de cerca de 4100m2. O pagamento
deveria ser no total de 12 300 contos, ao preço base de 3000 contos por m2
excedente.
02 de março de 1987 - Empresa
Soveral Martins Lda. solicita licença de 60 dias para iniciar a demolição de
parte do quarteirão e edifício do Parque Cine.
09 de abril de 1987 - É
apresentada uma nova Memória Descritiva, com os terrenos já na posse do
definitivo proprietário, a Seguradora O Trabalho.
09 de julho de 1987 - Solicitada
nova licença, de 15 dias, para demolição das restantes lojas existentes no piso
térreo com o total de 176 m2.
18 de agosto de 1987 - A Companhia
de Seguros, solicita licença, pelo prazo de 90 dias, para a execução de
enchimento de fundações e muros de suporte.
31 de agosto de 1988 - Na
consequência do indeferimento da Câmara Municipal, levado a cabo numa sessão
realizada a 31 de maio de 1988, à construção de mais um piso no prédio, que já
estava em obras iniciais, os proprietários contactam o exmo. Presidente da
Câmara porque “Analisando as razões em que foi fundamentada a deliberação, a
requerente julga dever esclarecer V. Exa. … das razões do pedido que ora
renova”. A empresa justifica acreditar que não excede os limites do já aprovado
anteriormente (a março de 1984 e posteriormente, com condições e contrapartidas
mais concretas, em novembro de 1986).
O anteprojeto previa 16 191 m2 de
área total de construção. Esta área total fora diminuída, em 739 m2, aquando da
elaboração do “projeto final”, que eliminava um andar de habitação e aumentava
um ao comércio. No entanto, a Seguradora, acabou por voltar atrás na decisão de
eliminar um piso de habitação e apresentou à Câmara uma proposta para a criação
de um “recuado” com a totalidade de 984 m2. Os proprietários consideram que
“adicionada esta área temos sensivelmente a área de construção autorizada
aquando da aprovação do ante-projeto. O andar cuja construção ora solicita
está, assim, praticamente, dentro dos limites da construção… com um acréscimo
insignificante num empreendimento de tal dimensão… A sua não execução…
representa considerável prejuízo”.
Situações desta natureza, em que a
Câmara auferia certos valores em consequência da autorização de mais construção
em altura, aconteceram pontualmente e sobretudo na década de 80. A titulo de
exemplo: os edifícios na Avenida Brasil, voltada para o mar, a passarem de
r/c+2 pisos para r/c+5+1, sob o valor de 100 contos por metro de fachada.
20 de junho de 1989 - É emitido um
novo parecer, por parte da Câmara Municipal em que, questões de áreas dos
últimos projetos aprovados são descriminadas para manter e justificar o
indeferimento anterior:
Um estudo prévio que apresentava
11 212 m2 de área total de construção foi aprovado em reunião, a 14 março de
1984. Este respeitava todo o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (R+EU)
porque a partir do segundo piso, o edifício desenvolvia- se em socalcos, a 45 graus.
A 1 de setembro de 1987, foi
aprovado um projeto, que apresentava 10 725 m2 de área total, embora não
respeitasse um artigo do R+EU, uma vez que só apresentava um recuo, para o
conjunto a partir do 4º piso.
A 19 de fevereiro de 1988, foi
apresentado pelo proprietário, um estudo que previa a inclusão de um 7º piso,
que foi indeferido, por contrariar a volumetria prevista no Plano de
Urbanização. A Seguradora mostrou-se insistente e renovou o pedido, chamando a
este acrescento, falsamente, de “recuado”. No entanto a Câmara considerou que
tal iniciativa iria agravar, o já em incumprimento, 59º artigo do RGEU. A
Câmara sugere que a este piso, caso permaneça o desejo da sua construção, a sua
aprovação pode ser feita mediante as alterações: subtração das quatro salas que
se destacam da fachada e recuo de 3 metros da fachada em relação ao plano
vertical que agora forma, não incluindo a caixa de escadas neste
movimento.
31 de outubro de 1989 - No
decorrer da construção do novo edifício foi indeferida por unanimidade a
proposta de reformulação do piso 7, tendo em conta o último parecer da Câmara
Municipal. Também foi vetado o acrescento ao projeto, de um 8º piso, com vista
à instalação de uma casa de máquinas, caixa de escadas e duas salas para
reunião do condomínio.
14 de agosto de 1990 - A Direção
Regional do Ordenamento do Território do Ministério do Planeamento e da
Administração do Território, em carta dirigida à Câmara Municipal, releva o
facto da construção do novo edifício estar a ser feita num “local classificado
no plano eficaz como zona residencial onde as construções podem ser isoladas ou
em banda com o máximo de r/chão e 2 andares” alertando para o facto da
construção não respeitar estas e outras condicionantes, o que “poderia
eventualmente vir a ser sancionado”. Dão abertura à Câmara para qualquer tipo
de deliberação.
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Edifício O Trabalho = Extratos
de uma Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitetura de autoria de Petra
Simões Leitão, complementada com dezenas de fotos, plantas, esquemas e estudos
diversos, e alicerçada com a indicação das diversas fontes e testemunhos
recolhidos, a qual pode consultar na íntegra AQUI (em PDF).
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