Eram tempos em que a necessidade tinha o nome de fome. A fome era um flagelo ao qual a casa dos pescadores tentava minguar distribuindo sopa pelos seus associados. Eram tempos de muita miséria e carências de toda a ordem.
O mar era um cemitério paralelo ao que a vila possuía. Por lá ficavam muitos dos habitantes de Buarcos. Além dos que morriam nos naufrágios, era também a forma como nos bacalhoeiros, à época, alguém falecia, a forma de se realizar o funeral. Com naturalidade e por costume, enrolava-se o corpo do pescador falecido na vela do seu dori e colocava-se-lhe uma barra de ferro atada na parte dos pés. O comandante realizava a cerimónia, rezando. Depois dava ordem que o mesmo fosse atirado pela borda do navio para o mar dizendo: "-Vai abaixo, descansa em paz!" Ali ficava na sua campa eterna… O mar.
A visita ao cemitério de St. Jones pelos pescadores quando iam a terra = Era um tempo sagrado ir visitar os entes queridos e amigos que ali tinham ficado no seu descanso eterno . Uma ligação afetiva tão nossa, tão profunda, que não podia deixar de a registar.
As mulheres de negro, outra imagem fortíssima das gentes da beira mar, tendo ao lado os filhos sem os pais pai morriam nos naufrágios e que um dia também eles lá poderiam ficar... um ciclo sem fim!
Os homens que nunca foram meninos porque o tempo não lhes dava esse seu tempo. Cedo iam com os mais velhos para o mar porque todos eram poucos para tentar ajudar no ganha-pão. Aos 8 anos alguns já andavam no coberto e no mexoalho. O mestre Manecas, por exemplo, aos 14 anos já era o arrais da sua própria lancha! Hoje olha-se para uma criança de 8 anos e achamo-la indefesa, mas naquele tempo via-se nela um homem já com tarefas definidas na rude vida da pesca.
Como muitos desses homens não foram meninos não tiveram acesso à escola, um dos aspectos de grande relevância. Era na faina do bacalhau que os colegas que sabiam ler escreviam e liam as cartas para os camaradas que não o sabiam fazer. E como me dizia um pescador: "-Eram assim os tempos, era a minha obrigação!"
As alcunhas eram um característico hábito de tratar cada um. Todos tinham a sua alcunha, muito própria das gentes da beira mar. Ainda hoje em Buarcos existe este hábito. Sinal de que se perpetuam no tempo com outro pormenor fascinante… Somos todos primos! É algo de grande riqueza afectiva. "-Bom dia primaço, olá primaço…"
A ligação que os homens tinham com o mar era de grande cumplicidade. Nasciam, viviam e morriam sempre em contacto com ele. Este foi um dos pormenores que permitiu que os 74 náufragos do navio João Costa se salvassem todos. A sua relação de intimidade com o mar, com as suas ronhas e manhas, deram-lhes os ensinamentos de salvação suficientes.
Há uma frase fantástica de Cagana que diz: "-Naquela altura, nascíamos, vivíamos e morríamos no mar!" Esta relação foi importantíssima sem dúvida !
Tinha também esta gente um grande espírito solidário e não hesitavam em arriscar a sua própria vida para salvar a de um companheiro. Eram um todo e assim se conseguiam tornar mais fortes perante um elemento como o mar que tem tanto de doce e meigo como de brutal, fantasmagórico e assassino.
“As espingardas” = Conta Kim-Zé Carvalho, autor do livro "Naufrágios de Gentes Minhas": "-Foi um mistério durante muitos anos o que minha avó Maria um dia me contou: que o meu avô levava sempre para a pesca do bacalhau uma caçadeira! Mas afinal - pensava eu - para que é que um pescador de linha levava uma arma? Mas afinal ia à pesca ou á caça? E foi durante a elaboração deste livro que o mistério foi descoberto: os navios à época não tinham câmaras frigoríficas e, como, tal levavam sardinha em serradura para isco mas esta chegava a uma altura que acabava. Daí abatiam uns pássaros, de nome paínhos, pois a sua tripa era uma isca fabulosa para o bacalhau para além do resto do corpo do pássaro. Este foi um truque que lhes foi ensinado pelos esquimós que, melhor que ninguém, sabiam do que o bacalhau mais gostava.
Os nossos avós pescadores, quando lhes faltava a isca usavam também os fígados do bacalhau e quando apanhavam um amanhavam-no, pegavam nos fígados e atiravam-nos para junto do dori, para que quando os pássaros viessem para apanhar o 'petisco' lhe pudessem dar uma pazada e assim apanhar alguns.
Caçadeira então para pescar, eheheheh, o que eu aprendi com este meu livro!"A relação dos nossos avós com os esquimós era muito boa o que demonstra o povo sociável que somos. Eles iam a bordo dos nossos navios onde lhes davam comida e acima de tudo aguardente… adoravam aguardente e um peixe chamado alabote que os nossos pescadores, quando os apanhavam, guardavam para lhes oferecer, que eles comiam cru. Contam alguns dos nossos avós: "-Adoravam alabote cru. Era amanhar e logo ali o comiam, o que nos metia alguma confusão, mas se era assim que eles gostavam, por nós tudo bem!".
O 'chico-espertismo' português também estava patente na pesca do bacalhau, pois havia alguns pescadores que iam ás linhas dos esquimós e de outros pescadores, roubar o peixe e muitas das vezes até as próprias linhas. Um dia um navio foi arrastado e esteve retido num antigo campo de concentração da 1ª Grande Guerra por tal motivo. E só de lá saíram após 'demarches' do nosso governo, tendo lá ido o navio Gil Eanes resgatar a tripulação… enfim, uma das infelizes características de alguns.
A ida para os mares do Canadá deu origem a que muitos fugissem para lá e daí para os Estados Unidos da América em busca de um futuro melhor.
O 'português-trota-mundos' está extraordinariamente bem retratado no salvamento de um dos grupos do navio João Costa. Aquando da abordagem do navio a um dos grupos, uma voz em português gritou-lhes: "-Rapaziada tenham calma que nós vamos aí salvá-los!". Era a voz de um português que andava num navio de nacionalidade americana e que fez questão, assim que soube que andava gente naufragada do seu sangue, acorrer a acalmá-los.
A sede, a par com a fome, foi um dos piores inimigos dos náufragos do navio João Costa. Andaram 7 dias na água e a morrerem… de sede! Ao 3º dia aconteceu algo que acabou por ter muita influencia no salvamento destes homens… choveu! Hidrataram e guardaram alguma água em garrafas e utensílios que passaram a servir de depósito para tal. A fome foi outra das lutas que travaram, comeram uma tartaruga que foi cortada em 74 pequenos pedaços de forma a que todos tivessem acesso a algo para meter na barriga. E acabaram no abate do cão (o Bobi) que alguns comeram tal o desespero numa altura em que alguns em loucura total já punham a hipótese de se abater o sr. Alberto, o chefe de máquinas… por ser o mais gordo e assim dar de comer a todos. Salvou-se o sr. Alberto com o abate do cão! Esta faceta da luta pela sobrevivência e a forma como se abateu e comeu o cão é um relato dramático e intenso que nos mostra o que o ser humano faz quando levado ao seu limite pela vida.
A fé de todos os homens do mar relatados nos 4 episódios deste livro é algo de muito importante. Todos eles eram pessoas que tinham na Senhora da Encarnação, na Senhora de Fátima e em Deus o expoente máximo da sua existência. Na pesca do bacalhau o ritual do baixar dos dóris para a água era sempre antecedido pela benção do comandante que dizia: "-Vão com Deus. Arreiam os botes!"
As louvadas, em que de manhã ao acordar se falava de Deus e de Nª. Senhora, na mudança dos turnos, na pesca nos seus momentos de solidão, os homens rezavam numa fé impregnada de conforto e ajuda. Há até um episódio marcante de um pescador ateu e que criticava os colegas ao vê-los rezar: ao fim de uns dias naquela luta titânica com a natureza ele, ao ouvir os camaradas a rezar, aprendeu as orações e depois, já era ele que em voz alta rezava e incentivava os camaradas a acompanhá-lo nas orações. Eram os mestres das traineiras que no principio da safra e após a saída da barra se dirigiam para a enseada e aproximando-se de terra em frente á capela da Srª da Encarnaçao pediam a sua proteção e a dos seus homens, assim como boas pescarias. Foi a de o náufrago que se perdeu 1 dia no bacalhau e passou esse dia a rezar a Nossa Senhora, foi o 'Espada' que durante as horas que andou na água e até ter lucidez falou e pediu ajuda à Senhora da Encarnação.
Esta postura de acreditar em Deus e na Senhora, é algo que não se confina a uma geração de pescadores pois todos, independentemente do seu tempo, têm este traço da fé enraizado da mesma forma.
(Historial retirado de texto explicativo sobre o livro "Naufrágios de Gentes Minhas" da autoria de Kim-Zé Carvalho / Dezembro 2015)
A ligação que os homens tinham com o mar era de grande cumplicidade. Nasciam, viviam e morriam sempre em contacto com ele. Este foi um dos pormenores que permitiu que os 74 náufragos do navio João Costa se salvassem todos. A sua relação de intimidade com o mar, com as suas ronhas e manhas, deram-lhes os ensinamentos de salvação suficientes.
Há uma frase fantástica de Cagana que diz: "-Naquela altura, nascíamos, vivíamos e morríamos no mar!" Esta relação foi importantíssima sem dúvida !
Tinha também esta gente um grande espírito solidário e não hesitavam em arriscar a sua própria vida para salvar a de um companheiro. Eram um todo e assim se conseguiam tornar mais fortes perante um elemento como o mar que tem tanto de doce e meigo como de brutal, fantasmagórico e assassino.
“As espingardas” = Conta Kim-Zé Carvalho, autor do livro "Naufrágios de Gentes Minhas": "-Foi um mistério durante muitos anos o que minha avó Maria um dia me contou: que o meu avô levava sempre para a pesca do bacalhau uma caçadeira! Mas afinal - pensava eu - para que é que um pescador de linha levava uma arma? Mas afinal ia à pesca ou á caça? E foi durante a elaboração deste livro que o mistério foi descoberto: os navios à época não tinham câmaras frigoríficas e, como, tal levavam sardinha em serradura para isco mas esta chegava a uma altura que acabava. Daí abatiam uns pássaros, de nome paínhos, pois a sua tripa era uma isca fabulosa para o bacalhau para além do resto do corpo do pássaro. Este foi um truque que lhes foi ensinado pelos esquimós que, melhor que ninguém, sabiam do que o bacalhau mais gostava.
Os nossos avós pescadores, quando lhes faltava a isca usavam também os fígados do bacalhau e quando apanhavam um amanhavam-no, pegavam nos fígados e atiravam-nos para junto do dori, para que quando os pássaros viessem para apanhar o 'petisco' lhe pudessem dar uma pazada e assim apanhar alguns.
Caçadeira então para pescar, eheheheh, o que eu aprendi com este meu livro!"A relação dos nossos avós com os esquimós era muito boa o que demonstra o povo sociável que somos. Eles iam a bordo dos nossos navios onde lhes davam comida e acima de tudo aguardente… adoravam aguardente e um peixe chamado alabote que os nossos pescadores, quando os apanhavam, guardavam para lhes oferecer, que eles comiam cru. Contam alguns dos nossos avós: "-Adoravam alabote cru. Era amanhar e logo ali o comiam, o que nos metia alguma confusão, mas se era assim que eles gostavam, por nós tudo bem!".
O 'chico-espertismo' português também estava patente na pesca do bacalhau, pois havia alguns pescadores que iam ás linhas dos esquimós e de outros pescadores, roubar o peixe e muitas das vezes até as próprias linhas. Um dia um navio foi arrastado e esteve retido num antigo campo de concentração da 1ª Grande Guerra por tal motivo. E só de lá saíram após 'demarches' do nosso governo, tendo lá ido o navio Gil Eanes resgatar a tripulação… enfim, uma das infelizes características de alguns.
A ida para os mares do Canadá deu origem a que muitos fugissem para lá e daí para os Estados Unidos da América em busca de um futuro melhor.
O 'português-trota-mundos' está extraordinariamente bem retratado no salvamento de um dos grupos do navio João Costa. Aquando da abordagem do navio a um dos grupos, uma voz em português gritou-lhes: "-Rapaziada tenham calma que nós vamos aí salvá-los!". Era a voz de um português que andava num navio de nacionalidade americana e que fez questão, assim que soube que andava gente naufragada do seu sangue, acorrer a acalmá-los.
A sede, a par com a fome, foi um dos piores inimigos dos náufragos do navio João Costa. Andaram 7 dias na água e a morrerem… de sede! Ao 3º dia aconteceu algo que acabou por ter muita influencia no salvamento destes homens… choveu! Hidrataram e guardaram alguma água em garrafas e utensílios que passaram a servir de depósito para tal. A fome foi outra das lutas que travaram, comeram uma tartaruga que foi cortada em 74 pequenos pedaços de forma a que todos tivessem acesso a algo para meter na barriga. E acabaram no abate do cão (o Bobi) que alguns comeram tal o desespero numa altura em que alguns em loucura total já punham a hipótese de se abater o sr. Alberto, o chefe de máquinas… por ser o mais gordo e assim dar de comer a todos. Salvou-se o sr. Alberto com o abate do cão! Esta faceta da luta pela sobrevivência e a forma como se abateu e comeu o cão é um relato dramático e intenso que nos mostra o que o ser humano faz quando levado ao seu limite pela vida.
A fé de todos os homens do mar relatados nos 4 episódios deste livro é algo de muito importante. Todos eles eram pessoas que tinham na Senhora da Encarnação, na Senhora de Fátima e em Deus o expoente máximo da sua existência. Na pesca do bacalhau o ritual do baixar dos dóris para a água era sempre antecedido pela benção do comandante que dizia: "-Vão com Deus. Arreiam os botes!"
As louvadas, em que de manhã ao acordar se falava de Deus e de Nª. Senhora, na mudança dos turnos, na pesca nos seus momentos de solidão, os homens rezavam numa fé impregnada de conforto e ajuda. Há até um episódio marcante de um pescador ateu e que criticava os colegas ao vê-los rezar: ao fim de uns dias naquela luta titânica com a natureza ele, ao ouvir os camaradas a rezar, aprendeu as orações e depois, já era ele que em voz alta rezava e incentivava os camaradas a acompanhá-lo nas orações. Eram os mestres das traineiras que no principio da safra e após a saída da barra se dirigiam para a enseada e aproximando-se de terra em frente á capela da Srª da Encarnaçao pediam a sua proteção e a dos seus homens, assim como boas pescarias. Foi a de o náufrago que se perdeu 1 dia no bacalhau e passou esse dia a rezar a Nossa Senhora, foi o 'Espada' que durante as horas que andou na água e até ter lucidez falou e pediu ajuda à Senhora da Encarnação.
Esta postura de acreditar em Deus e na Senhora, é algo que não se confina a uma geração de pescadores pois todos, independentemente do seu tempo, têm este traço da fé enraizado da mesma forma.
(Historial retirado de texto explicativo sobre o livro "Naufrágios de Gentes Minhas" da autoria de Kim-Zé Carvalho / Dezembro 2015)
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