2.12.15

Buarcos: Histórias de pescadores, do mar, e de "Naufrágios de Gentes Minhas"

O nascer da comunidade de Buarcos foi feito pelas migrações de pescadores de outras terras. Exemplo disto são os poveiros com as suas lanchas (que em Buarcos não existiam). Quando aqui arribavam e posteriormente não conseguiam ir embora por o mar não o permitir, por aqui ficavam vindo a transformar as suas lanchas em habitações. Foi um enraizamento que marcou muito a formação da comunidade piscatória e local. 
Eram tempos em que a necessidade tinha o nome de fome. A fome era um flagelo ao qual a casa dos pescadores tentava minguar distribuindo sopa pelos seus associados. Eram tempos de muita miséria e carências de toda a ordem. 
O mar era um cemitério paralelo ao que a vila possuía. Por lá ficavam muitos dos habitantes de Buarcos. Além dos que morriam nos naufrágios, era também a forma como nos bacalhoeiros, à época, alguém falecia, a forma de se realizar o funeral. Com naturalidade e por costume, enrolava-se o corpo do pescador falecido na vela do seu dori e colocava-se-lhe uma barra de ferro atada na parte dos pés. O comandante realizava a cerimónia, rezando. Depois dava ordem que o mesmo fosse atirado pela borda do navio para o mar dizendo: "-Vai abaixo, descansa em paz!" Ali ficava na sua campa eterna… O mar. 
A visita ao cemitério de St. Jones pelos pescadores quando iam a terra = Era um tempo sagrado ir visitar os entes queridos e amigos que ali tinham ficado no seu descanso eterno . Uma ligação afetiva tão nossa, tão profunda, que não podia deixar de a registar. 
As mulheres de negro, outra imagem fortíssima das gentes da beira mar, tendo ao lado os filhos sem os pais pai morriam nos naufrágios e que um dia também eles lá poderiam ficar... um ciclo sem fim!
Os homens que nunca foram meninos porque o tempo não lhes dava esse seu tempo. Cedo iam com os mais velhos para o mar porque todos eram poucos para tentar ajudar no ganha-pão. Aos 8 anos alguns já andavam no coberto e no mexoalho. O mestre Manecas, por exemplo, aos 14 anos já era o arrais da sua própria lancha! Hoje olha-se para uma criança de 8 anos e achamo-la indefesa, mas naquele tempo via-se nela um homem já com tarefas definidas na rude vida da pesca. 
Como muitos desses homens não foram meninos não tiveram acesso à escola, um dos aspectos de grande relevância. Era na faina do bacalhau que os colegas que sabiam ler escreviam e liam as cartas para os camaradas que não o sabiam fazer. E como me dizia um pescador: "-Eram assim os tempos, era a minha obrigação!"
As alcunhas eram um característico hábito de tratar cada um. Todos tinham a sua alcunha, muito própria das gentes da beira mar. Ainda hoje em Buarcos existe este hábito. Sinal de que se perpetuam no tempo com outro pormenor fascinante… Somos todos primos! É algo de grande riqueza afectiva. "-Bom dia primaço, olá primaço…"
A ligação que os homens tinham com o mar era de grande cumplicidade. Nasciam, viviam e morriam sempre em contacto com ele. Este foi um dos pormenores que permitiu que os 74 náufragos do navio João Costa se salvassem todos. A sua relação de intimidade com o mar, com as suas ronhas e manhas, deram-lhes os ensinamentos de salvação suficientes.
Há uma frase fantástica de Cagana que diz: "-Naquela altura, nascíamos, vivíamos e morríamos no mar!" Esta relação foi importantíssima sem dúvida ! 
Tinha também esta gente um grande espírito solidário e não hesitavam em arriscar a sua própria vida para salvar a de um companheiro. Eram um todo e assim se conseguiam tornar mais fortes perante um elemento como o mar que tem tanto de doce e meigo como de brutal, fantasmagórico e assassino. 
“As espingardas” = Conta Kim-Zé Carvalho, autor do livro "Naufrágios de Gentes Minhas": "-Foi um mistério durante muitos anos o que minha avó Maria um dia me contou: que o meu avô levava sempre para a pesca do bacalhau uma caçadeira! Mas afinal - pensava eu - para que é que um pescador de linha levava uma arma? Mas afinal ia à pesca ou á caça? E foi durante a elaboração deste livro que o mistério foi descoberto: os navios à época não tinham câmaras frigoríficas e, como, tal levavam sardinha em serradura para isco mas esta chegava a uma altura que acabava. Daí abatiam uns pássaros, de nome paínhos, pois a sua tripa era uma isca fabulosa para o bacalhau para além do resto do corpo do pássaro. Este foi um truque que lhes foi ensinado pelos esquimós que, melhor que ninguém, sabiam do que o bacalhau mais gostava.
Os nossos avós pescadores, quando lhes faltava a isca usavam também os fígados do bacalhau e quando apanhavam um amanhavam-no, pegavam nos fígados e atiravam-nos para junto do dori, para que quando os pássaros viessem para apanhar o 'petisco' lhe pudessem dar uma pazada e assim apanhar alguns.
Caçadeira então para pescar, eheheheh, o que eu aprendi com este meu livro!"A relação dos nossos avós com os esquimós era muito boa o que demonstra o povo sociável que somos. Eles iam a bordo dos nossos navios onde lhes davam comida e acima de tudo aguardente… adoravam aguardente e um peixe chamado alabote que os nossos pescadores, quando os apanhavam, guardavam para lhes oferecer, que eles comiam cru. Contam alguns dos nossos avós: "-Adoravam alabote cru. Era amanhar e logo ali o comiam, o que nos metia alguma confusão, mas se era assim que eles gostavam, por nós tudo bem!". 
O 'chico-espertismo' português também estava patente na pesca do bacalhau, pois havia alguns pescadores que iam ás linhas dos esquimós e de outros pescadores, roubar o peixe e muitas das vezes até as próprias linhas. Um dia um navio foi arrastado e esteve retido num antigo campo de concentração da 1ª Grande Guerra por tal motivo. E só de lá saíram após 'demarches' do nosso governo, tendo lá ido o navio Gil Eanes resgatar a tripulação… enfim, uma das infelizes características de alguns.
A ida para os mares do Canadá deu origem a que muitos fugissem para lá e daí para os Estados Unidos da América em busca de um futuro melhor.
O 'português-trota-mundos' está extraordinariamente bem retratado no salvamento de um dos grupos do navio João Costa. Aquando da abordagem do navio a um dos grupos, uma voz em português gritou-lhes: "-Rapaziada tenham calma que nós vamos aí salvá-los!". Era a voz de um português que andava num navio de nacionalidade americana e que fez questão, assim que soube que andava gente naufragada do seu sangue, acorrer a acalmá-los. 
A sede, a par com a fome, foi um dos piores inimigos dos náufragos do navio João Costa. Andaram 7 dias na água e a morrerem… de sede! Ao 3º dia aconteceu algo que acabou por ter muita influencia no salvamento destes homens… choveu! Hidrataram e guardaram alguma água em garrafas e utensílios que passaram a servir de depósito para tal. A fome foi outra das lutas que travaram, comeram uma tartaruga que foi cortada em 74 pequenos pedaços de forma a que todos tivessem acesso a algo para meter na barriga. E acabaram no abate do cão (o Bobi) que alguns comeram tal o desespero numa altura em que alguns em loucura total já punham a hipótese de se abater o sr. Alberto, o chefe de máquinas… por ser o mais gordo e assim dar de comer a todos. Salvou-se o sr. Alberto com o abate do cão! Esta faceta da luta pela sobrevivência e a forma como se abateu e comeu o cão é um relato dramático e intenso que nos mostra o que o ser humano faz quando levado ao seu limite pela vida. 
A fé de todos os homens do mar relatados nos 4 episódios deste livro é algo de muito importante. Todos eles eram pessoas que tinham na Senhora da Encarnação, na Senhora de Fátima e em Deus o expoente máximo da sua existência. Na pesca do bacalhau o ritual do baixar dos dóris para a água era sempre antecedido pela benção do comandante que dizia: "-Vão com Deus. Arreiam os botes!"
As louvadas, em que de manhã ao acordar se falava de Deus e de Nª. Senhora, na mudança dos turnos, na pesca nos seus momentos de solidão, os homens rezavam numa fé impregnada de conforto e ajuda. Há até um episódio marcante de um pescador ateu e que criticava os colegas ao vê-los rezar: ao fim de uns dias naquela luta titânica com a natureza ele, ao ouvir os camaradas a rezar, aprendeu as orações e depois, já era ele que em voz alta rezava e incentivava os camaradas a acompanhá-lo nas orações. Eram os mestres das traineiras que no principio da safra e após a saída da barra se dirigiam para a enseada e aproximando-se de terra em frente á capela da Srª da Encarnaçao pediam a sua proteção e a dos seus homens, assim como boas pescarias. Foi a de o náufrago que se perdeu 1 dia no bacalhau e passou esse dia a rezar a Nossa Senhora, foi o 'Espada' que durante as horas que andou na água e até ter lucidez falou e pediu ajuda à Senhora da Encarnação. 
Esta postura de acreditar em Deus e na Senhora, é algo que não se confina a uma geração de pescadores pois todos, independentemente do seu tempo, têm este traço da fé enraizado da mesma forma. 
(Historial retirado de texto explicativo sobre o livro  "Naufrágios de Gentes Minhas" da autoria de Kim-Zé Carvalho / Dezembro 2015)

Sem comentários: